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sábado, outubro 15, 2011

OBRA LITERÁRIA E PLÁSTICA DADA EM LIVRO


AS COISAS

E AS PALAVRAS

autores
rocha de sousa
maria João gamito


Voltemos a Sísifo. É difícil fechar os olhos e decidir morrer. A lâmpada da Guernica continua acesa no tecto do mundo. E entre as pedras todas, amontoadas, sem que algumas delas nos pertençam por destino, há sempre o fragmento paradoxal do recomeço, o detalhe e o apelo que conduzem à escolha. Um resto de memória. A simulação da permanência.
Sísifo seremos nós, à espera da palavra?

Há a encosta, a planície, breves dunas, e a praia deserta. Viajando entre a espuma esponjosa da maré e do declive das areias além, olha-se na perpendicular, na direcção das nossas próprias marcas, e o que vemos são coisas. Estão ali desde o início do mundo, sem deuses nem homens, à espera de um rosto, de um nome. Ou da imagem da imagem delas (coisa sobre coisa) para que a palavra lhes dê sentido e as faça destino recomeço substantivado, ficção pelas memórias, o visível e o dizível inventando-se como amanhãs possíveis.

Esta exposição começa com uma escolha «ao acaso» e o encontro pensante (mas consciente de Sísifo) de duas pessoas diferentes, cujo trabalho por vezes reúne e as obriga à «semelhança» das conclusões. É um facto trivial, quotidiano, sem mistério nenhum, mas dificilmente determinável na assinatura individualista dos objectos/projectos que os operadores da cultura nos propõem à meditação e à posse.
Perante coisas sem nome tudo o que parte da planície chega ao cume do continente para regressar ao anonimato põe-se o problema da nomeação feita e partilhada colectivamente. As coisas, enquanto aparência absurda, desafiam a paixão solitária: na invenção de riscos, de símbolos gráficos, de símbolos fonéticos, princípio estrutural de quem somos no centro de um mundo que obviamente nos excede.
De facto, ao artista não basta a descoberta solitária. Há sempre um dia em que ele se interroga com os outros homens: «Estas são as minhas palavras. Quais são as palavras dos outros?» A meio da encosta, entre dois recomeços, a solidão pensa-se assim em termos de solidariedade e a aventura de cada nomeação, embora mais difícil, torna-se mais fecunda. A urgência da fala passa pela soma do esforço em conjunto (hoje sobretudo): trata-se de saber o valor das individualidades na consonância possível das reflexões, a par dos individualismos trágicos que a História nos aponta (esplendorosamente) após cada recomeço na ficção do futuro.

Que importa quem escreveu as imagens e quem desenhou os textos? É preciso dar o exemplo da humildade no acto de partilhar as memórias como o corpo de ficção. Eis o que se tenta aqui, através de um esforço de conjunto provavelmente pouco experimentado num espaço social onde, à escassez do risco e da convivência serena, se contrapõem rótulos e vulgares equívocos. Quando se pensa em conjunto, moderando para uma área comum (de nitidez) o apetite individual por afirmações definitivas, chega-se sempre a uma escolha nova. E é então que se entende melhor como nenhuma escolha é de «acaso»; ou que as coisas nomeadas, partindo da descoberta de um único objecto, se multiplicam em ferro, madeira, calcário, desertos e barcos, casas e cidades outra vez o lugar das marés, retorno por fim assumido como acto poético e não como derrota de solidões indizíveis.
Portanto ninguém assinará esta introdução: nenum dos dois autores dos objectos todos, nem uma terceira pessoa avalista institucional de méritos alheios. Se a pedra volta, de novo e apenas, para o lugar das marés, é talvez legítimo concluir que as vozes deste discurso, após a conquista de uma consonância ou de uma ideia comum, também têm no oceano da vida lugares próprios, entre a individualidade inalienável e a tarefa universal de Sísifo.

a pedra, entre textos e imagens

1+1

A todo o comprimento da praia, entre brandos rumores de espuma e vozes devolvidas pela falésia, um olhar preso à areia é um longo «travelling» sobre coisas sem valor concreto de uso por isso intemporais, por isso invariavelmente disponíveis. A maré dilata-se e encobre tudo, falsos cristais, restos de vida oceânica. Barcos de madeira esperam, com olhos egípcios imóveis. E os petroleiros passam silenciosamente nas rotas do mundo, colando-se ao horizonte da distância.
Pela manhã, a praia cresceu como os corpos vivos mas deserta de tão cedo, apenas o rumor da espuma e agora a imobilidade monumental da falésia. De novo a descoberto, sob o olhar lateral que se move, milhares de coisas diversas: conchas brilhantes de súbito raríssimas, pedras roladas que lentas sedimentações marcaram com faixas argilosas, desenhos impossivelmente naturais que o nosso imaginário reinventa todos os dias, sombras também. Olhar suspenso, paralelo ao solo, pedras e pedras e pedras deslizando, intervalos sem medida, pequenos cristais entretanto. Passam cintilações de carcaças frágeis onde já existiu vida invertebrada, nervuras de plantas aquáticas, rios de sal correndo nas fracturas abertas entre milhões de outras pedras em miniatura.
Dentro do mundo há sempre a maqueta do mundo.
Na distância, petroleiros laterais e longínquos sempre.
E então a pedra outra, vulgar, nem redonda nem facetada, acidente natural no espaço de todas as singularidades. Contudo, quando a retiramos do côncavo de areia onde permaneceu, o que resta do seu próprio rasto é um vazio indecifravelmente desconfortante. Coisa sem nome, só pedra, sedimento milenário de um pó a que não sabemos atribuir a palavra última. Coisa, antes de tudo, ou talvez primeiro instrumento de uma reconstrução: coisa de remeter (apenas e de novo) para o lugar das marés.
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Os textos publicados acima, e a fotografia e o desenho, constituem a abertura e o primeiro capítulo de um livro catálogo da exposição aqui referida. Há mais uma dezena de capítulos, sempre balanceados entre o texto e o desenho ou vice-versa, numa espécie de realismo gráfico que se reinventa na deriva da escrita. Ambos os autores reivindicam ambas as coisas. Muitos livros sobraram, leves, pequenos, graciosos e ponderados. Se alguém os quiser adquirir pode aceder a este blogue, solicitando, pelos meios usuais, a versão completa.

Um comentário:

Miguel Baganha disse...

Este livro/catálogo de singelo tamanho é assombroso no seu conteúdo. Ele demonstra, apoiado no conceito da semiótica e através de uma exposição realizada por dois autores, que a razão das palavras nas coisas está interligada desde a gênese do Homem. É uma peça simultaneamente notável no âmbito das artes plásticas e no próprio campo literário. Parabéns, mestre. Só lamento não ter estado cá nesse período (Lisboa, 1985) para fruir desta maravilhosa e inovadora exposição in-loco.

Como dizia Almada: «1+1=1»