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sexta-feira, agosto 26, 2011

EVENTUAL PARTÍCULA DO INVISÍVEL E DA MORTE



Imagens ao espelho, corpos, estou a olhar
um cadáver de cada vez, nus, frios e hirtos.
como vítimas estranhas jazendo no espaço frio da morgue
ou na cortante madrugada, sacudida de ventos finas areias.

Os espelhos multiplicam-se, os corpos também.

Todos eles, primeiro, foram expulsos do mar
pela maior vaga alguma vez vista naqueles dias.
Todos eles, depois, vomitam peixes,
morrendo sem forças, ao procurarem expulsar da boca
grandes porções de areia em papa e pequenas conchas prateadas.

Apesar de tudo, e da reanimação imaginária como possível,
estavam mortos os homens, como os peixes,
bocas abertas, areia até aos dentes;
os olhos fixos, os corpos já inchados,
entretanto patéticos, inúteis, sombrios, inquietantes.

Ninguém se arredou da tarefa dura de cavar aquelas bocas.
Ninguém se apercebeu das coisas vindas nas colheradas enviesadas.


Cobertos por mantas até ao queixo, aqueles homens,
permaneciam ocultados dos filhos, mal de ver,
e os próprios filhos talvez nem imaginassem os pais ali,
apenas feitos de bocas entaipadas por areia húmida.
Alguns filhos eram rapazes de estudos,
já só percebiam dias de férias, a baba de cada pai, o prato da açorda.

Olhavam, apesar disso, numa curiosidade mórbida mas de fascinação,
as bocas abertas e erguidas, quase tapadas de areia,
quase fingindo um grito em vias de soltar-se do fundo
e na hora terrível em que tudo estivesse limpo.

Mas quando as mulheres, já perto da garganta,
deixaram de esgaravatar tão malvada areia
e entornaram água para dentro das bocas rígidas,
os moços, ansiosos, quiseram levar aquela matéria, a baba das ondas,
além desses pequenos e subtis grãos das praias,
os quais isolavam em descoberta debaixo de uma grossa lente
e logo os perdiam de vista ao adestrado dos gestos.


A sua esperança residia no facto de haver ali, entre fios de algas
e os restos da massa, ligando areia e sufocação,
como breves sinais, porventura sempre a escapar-se,
sinais cuja natureza entretanto, e afinal, mantinha invisíveis
outras coisa que não fossem porventura, e apenas, partículas da morte.

fotografias de Rocha de Sousa com a participação encenada de Miguel Baganha

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