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terça-feira, setembro 29, 2009

METAMORFOSES DE UM VELHO MURO LATERAL

foto montagem com colagem de rocha de sousa

Tu já viveste menino na calha de pedra onde subsiste este muro. Um branco sujo, cal outrora, encobria ruínas de edifícios obscuros, sem rosto nem fim. Esse branco, através do qual muitos ossos pareciam emergir fantasmas, enquanto a chuva descarnava areias, tornava visíveis veladas figuras de meninos e meninas, velhos encolhidos, ferros ou próteses oxidadas pela intemporal carga das argamassas. Armaduras de Ucello, pareciam e talvez fossem, guernicas depois, recortes de patas de cavalo e urros durante a morte, apesar da lâmpada suspensa do tecto do mundo, porventura o céu iluminado pelos últimos gritos, o olhar dos mortos. Tu vias essas coisas como? E fotografavas o quê, além das rugas e fracturas da superfície do muro? Eu sei: foi no tempo em que repintaram aquela longa empena de vermelho saguíneo, visão de todas as batalhas, borbulhas submersas nas novas toalhas deslavando-se, coisa de tanta areia imprópria, em breve feridas explodindo sem que ninguém reparasse na hora. Sim, claro que podes redizer: surgiam também órbitas como buracos escuros pelos quais se podia espreitar a suspeita presença, no fundo, de ossos, tíbias, mãos de alumínio, uma espécie de revelação do enterro de guerreiros biomecânicos, sem origem nem vitória visível, mesmo quando tudo não passasse, em sonho, de ortopedia superior, articulações ligadas a hipotéticos nervos e músculos de cetra gente, talvez vagos indícios de seres impossíveis ou míticos, esmagados no impiedoso emparedamento. Nada disso pode ser real, tu bem sabes, nem o próprio Universo, nem o fim nem o princípio dele. Alguém, em todo o caso, tinha medo de que se desnudasse o manto que encobria origens difusas e memórias insustentáveis: o muro voltou a receber baldes de tinta vermelha, menos definida, mas nenhuma sombra sobrou. Não se ouviu nenhum grito, nada de nada maculava a tinta ainda fresca. Todos os cavaleiros de Ucello haviam desaparecido sob aquela lisura afinal quente, não restavam sinais de ossos ou cabeças escondidas em elmos tapados de ferrugem. O muro imenso, cada vez mais tosco e anos depois abrindo outras fendas, é apenas visitado, nas tardes de verão, por pardais que ali fazem curtas escalas em direcção às árvores, ninho da noite. Hoje só podes fotografar esta última ambiguidade, brancos e argamassas enfim emergindo definitivamente por sua conta, cinzentos inexplicáveis, polpa orgânica fingida e meio apodrecida, natureza morta assim, inteira, sem vestígios além do que parece velho ou de configuração abstracta.
É outra escrita, mas igualmente uma escrita indecifrável.

quarta-feira, setembro 23, 2009

MEMÓRIA REVIVIDA DE UM TANGO PERDIDO


f0tos obtidas da internet

A esquina, o canto, o ângulo recto de um chão enviesado, o vermelho e o negro, como em Stendhal,
talvez a pena de ferro fino crispada sobre o papel poroso, todo o ruído num só fio rasurado - e a dança procurada dos dedos invisíveis, apenas o aparo em jeito de lança antiga, preto, branco e vermelho, memória revivida de um tango perdido, aqui encoberto pelos fragmentos minimalistas das suas cores emblemáticas, românticas, a prumo ou na horizontal, a escrita cursiva, itálica, bordando aluns limites escuros, lisos ou texturados, e ainda os panos dos teatrinhos de zarzuela, flamengo em Granada, as praças de Buenos Aires, desertas sob a bota militar, gente desaparecida, assassinada, corpos cinzentos atirados para as valas comuns que só há pouco as mães dilaceradas desobriram, impossibilitadas de encontrar nas fardas e nos ossos, o rosto forte dos seus filhos. Praças amplas como as de Chirico, atravessadas por sombras negras, oblíquas, ameaça visual que uma menina, inocente, não conhece, fazendo rolar o arco sob os contrastes da luz branca, solar, e a sombra côncava debaixo das arcadas, como acontece na Lua que já sabemos como é, nem plácida nem escura: os poetas cantavam-na, em tabernas e espaços nocturnos, ouvindo os sapatos das mulheres, vendo as blusas vermelhas, os seus folhos negros, uma coxa avançando, branca, e logo se escondendo, enquanto as botas dos homens, pretas e luzidias, traçavam o espaço e batiam no chão, num rodopio do sonho e do desejo, e em tudo isso afinal, uma geometria secreta como a que se expõe e se oculta nestes planos negros, nestas faixas vermelhas, no brilho branco das camisas, equilíbrio ternário que submete o nosso olhar à vertigem das curvas, à doce violência de um enlace pela dinâmica, corpos em contra-luz, negro partilhado com o vermelho, branco com o apagamento do gesto petrificado. Também nestas telas o mundo se petrifica e as diagonais sugerem a ordem pelo absoluto, são igualmente absurdas na inutilidade do seu espectáculo mínimo, só elas fingindo uma rasura textural em certas arestas, espaço do silêncio entretanto, a completa imobilidade, o completo esquecimento das grandes bandeiras totalitárias.
Se Chirico ressuscitasse e viessa visitar estes espaços, na dureza de quase nada, haveria de desenhar uma menina que ele criou e ali costumava passar, o aro de metal barulhando devagar no empedrado de outrora.
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texto de Rocha de Sousa, partilhado com duas pinturas de Miguel Baganha na exposição em Setembro, galeria Prova de Artista, e uma sessão de Tango, 2009

quinta-feira, setembro 10, 2009

UMA VIDA ESCASSA PARA TANTA MELANCOLIA



Já não tenho fotografias tuas na velha casa do sul, a não ser esta em que pareces muito novo. Era o teu rosto na altura em que casaste com a mãe. Sempre me disseram isso, desde os meus primeiros passos pela escola. Que fizeram das tuas fotografias, aquelas de corpo inteiro, com uma bengalinha a fingir e polainas de camurça nos sapatos envernizados? Não vi nada dessa época, ao vivo, só achei para meu consolo as fotografias de família, belíssimas, aquela rapariga ao mesmo tempo singela e notável, meias de lã, sapatos de fivela lateral, um vestido muito fino, de cintura descaída, em cores esplendorosamente diluídas. E tu, mais tarde, com ela já mudada para senhora, um inverno cinzento por cima das cabeças, um chapéu de fita em ti, uma gola de pele nos ombros dela. Havia, cobrindo as vossas silhuetas, uma ligeiríssima velatura sépia, jeito do fotógrafo assaz famoso ou sinal da passagem do tempo que tem essa propriedade mágica e branda de queimar os ingredientes da representação assim.
Muitos anos depois, lembras-te?, a tua fabriqueta de rolhas ficou a viver das sobras, entre farmácias leais que produziam alguns remédios e a protecção daquele homem silencioso, trabalhador sem mácula, que se chamava Juiz, José Juiz, e tinha de facto uma surpreendente noção dos valores da amizade, da partilha, da beleza dos caminhos campestres, embora não soubesse ler nem escrever. Foi uma época triste mas votada à esperança pela poética lírica dos teus versos. Era, na humilhação da perda, a possível sobrevivência do espírito, os passos pisando veredas junto ao rio, papéis escritos e guardados na albibeira do casaco, um chapéu mais moderno e mais feio na cabeça, com a tal fita no tom próprio apesar de indevidamente baça, cinzenta como os altos muros das velhas fábricas corticeiras, mortas pelo fogo que a crise financeira espalhava pelo país, sombra, aliás, da política e exportação da cortiça em prancha, portanto sem a manufactura portuguesa, ao acaso de quem herdara milhares de sobreiros, assim enriquecendo mais depressa, delfins prosaicos, caçadores arrogante a fingir nobreza genealógica.
Agora posso ver-te daqui, através da derradeira imagem, sentado nos muros baixos a montante da lagoa que o rio nos emprestava em certas épocas do ano para um repouso tardio, as lágrimas dos chorões quase tocando o espelho móvel da maré baixa. O sol batia no teu rosto, enchendo-o de luz, olhavas em frente, na direcção da foz ou daquele horizonte que recebia a queda do balão redondo e luminoso, alaranjado, ao ritmo da temperatura lenta do começo e do fim de cada Verão. Toda a paisagem vista nessa atitude contemplativa, descomplicada como a voz de um poeta guardador de rebanhos, Alberto Caeiro, ou como a de um outro artista de ninguém que dizia sentir a sua alma voando de mundo em mundo e o coração preso à terra, bem lá no fundo.
José Juiz tinha um cão que o acompanhava pela cidade. O homem levava as encomendas ao correio e o cão deslocava-se a seu lado, numa agitação das pernas em frente, para acompanhar a grandeza plácida do seu senhor, passos maiores. E num desses dias, já imprevistos, José Juiz, grave, aproximou-se de mim, tratou-me por menino, como sempre, e disse apenas: «menino, olhe bem para o seu pai».
Foi só desta maneira, nada antes, nem com os sonhos premonitórios da mãe. Não me fora apresentada uma sentença, parecia um aviso apropriado, e logo a cabeça do José a baixar, a mão acenando pendida, o corpo a enfiar-se na viela a que chamavam rua Nova. Então olhei para ti, pai. De manhã cedo, estavas a sair da casa de banho, com uma toalha em volta do pescoço, e disseste «olá, tão cedo» e eu percebi o teu sorriso, esbocei um «bom dia,pai», enquanto tu fixavas os olhos nos meus, boca entreaberta de haver falado, boca tão pouco enviesada mas enviesada no canto esquerdo, expressão de súbito tímida, de desconforto ou pudor -- «menino, olhe bem para o seu pai». Foi o dia em que soube que ias morrer.



eu sei, era com este objecto que tu espreitavas as rimas
dos teus versos, as facturas de pequenas encomendas e
a pureza das rolhas, quando a sua matéria se dizia sexta.