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segunda-feira, dezembro 31, 2007

RETOMA DE OBRAS NA DERIVA DE MIM


Este texto, se descontarmos alguns efeitos resultantas da transição da imagem para outros suportes, mostram em termos aceitáveis o espírito desse modo de formar, implosões e projecções no espaço directa ou indirectamente assumidas com fotografias, jornais, matéria orgânica, restos das guerras de então, sobretudo nas colónias portuguesas, a par de vectores dinâmicos, direcções do olhar e do ser, sinais de desconstrução e construção, pois este espaço pictórico-gráfico não pode avaliar-se apenas na presunção de que olhamos no plano frontal: podemos imaginar que flutuamos por cima ou por baixo de uma queda de coisas, referências vagas, evasivas mas tambémconjunto de obras, pintura, desenho, desenho e colagem, releva de uma vasta produção do fim dos anos 60 e parte da década de 70. As peças situadas abaixo deste consistentes, num teatro do qual não se expurgam fugazes fantasmas das guerras contemporâneas.





















Pintura que inicia este post, integrada em grandes dimensões nas provas de agregação (vide doutoramento, 1972), e que foi realizada com técnicas mistas, acrílica, spray, colagens, elementos morfológicos suscitando a ideia de trabalho, energia expendida, as marcas geológicas de um tempo sempre a passar. O tema (ENERGIA) orientava os concepções plásticas complementares, a par da tese nuclear e de mais uma lição gerida a partir de um sorteio e propostas.

terça-feira, dezembro 25, 2007

NO DIA DO NASCIMENTO MÍTICO

pintura digital de rocha de sousa

Resolvi colocar aqui, a céu aberto, em cores macias e alguma terras, esta pintura virtual, assim colada ao dia do nascimento mítico, porventura menos verdadeira no quadro do mundo actual. As intervenções seguintes atravessam, com dor, o coração das pessoas ou mostram a fragilidade delas pelo vapirismo mais cruel da sua história no último século, sem falar de épocas recuadas e de Cruzadas indesculpáveis.

domingo, dezembro 23, 2007

O ESTRANHO CASO DE ANA ORWELL




Na cave de um velho edifício vazio, apenas frequentado por algumas dezenas de indigentes, pobres caídos em desgraça ou reféns de drogas, à semelhança do que acontecia nas grandes metrópoles da segunda metade do século XX, a eclosão acidental de um pequeno incêndio, dramático pelas circunstâncias de promiscuidade no lugar, obrigou a intervenções dos bombeiros e da polícia. A remoção de dois cadáveres, que se encontravam perto de uma porta blindada, entre destroços queimados, alertou as autoridades para certas características do edifício naquela zona, fortificações adicionais e claramente posteriores à data da construção inicial, parecendo fazer parte da necessidade que justificara a implantação de passagem tão cuidadosamente encerrada. Durante o rescaldo do incêndio, a polícia, auxiliada por sapadores, forçou duramente a abertura da porta, tendo sido necessáro usar cargas explosivas em certos pontos do seu encaixe. Foi assim aberto um túnel escassamente apetrechado que desembocava numa série de salas cuja configuração e aparelhos suscitavam a ideia de laboratórios cuja finalidade se mostrava difícil desvendar numa primeira avaliação. Todas as tubagens eram estranhamente finas e o grosso delas partia de plataformas de vigilância ou controle de qualquer actividade nunca nomeada nos blocos de lettring, bandas arrumadas junto dos computadores entretanto desactivados por completo, dado o absoluto corte de energia verificado no prédio desde há muito. Não havendo registos, nas instituições apropriadas e serviços secretos acerca da vocação daquele volume arquitectónico de seis andares, os investigadores tiveram de resignar-se com a notícia de haver ali funcionado um centro de actividades fiscais e o Ministério da Segurança. Depois de obter muitos indicadores no interior mais profundo da Casa, a polícia encerrou a zona num largo perímetro e foi então iniciada uma pesquisa a todos os pisos, incluindo naturalmente as caves, sempre recorrendo a grandes discrição a fim de salvaguardar a cidade de qualquer desastre. Cá fora, o bloco, cercado por barreiras e fitas de aviso, via-se envolvido em cenários delicadamente arborizados, contrastando com largos panos de parede gangrenada. Nas extremidades do lugar havia rampas para parques de estacionamento também desactivados, com ligação a elevadores muito amplos cujos cabos permitiam a ligação das caves à placa do último andar.
Em suma, registadas estas informações, que a população acompanhou de longe e pela escassez noticiosa dos jornais, um duro silêncio pareceu ter desabado sobre aquele incidente, muito arificialmente conotado com os vagabundos que se acomodavam ali e acabaram por ser encaminhados para Centros de Acolhimento na periferia. Mas houve sempre transeuntes mais curiosos que assinalaram a manutenção da área de segurança e a entrada e saída de veículos com caixa fechada, cuja permanência nos parques durava variavelmente uma ou duas horas.
A comunicação social acabou por conseguir romper as paredes do sigilo. Nas caves daquele edifício aparentemente abandonado funcionara um núcleo de pesquisa biológica, clonagem e recaracterização de células. Em anexo a esse espaço de labratórios, alguns deles vandalizados, havia uma espécie de grande morgue cujas gavetas estavam cheias de cadáveres decompostos, a maior parte deles reduzido à estrutura óssea. Embora todos os arquivos se encontrassem meio destruídos, foi possível perceber que os restos mortais daquela gente correspondiam aos milhares de cidadadãos desaparecidos desde o golpe de força que derrubara o governo e o substituira por uma junta militar de comportamento altamente repressivo. Muitas pessoas e familiares dos desaparecidos lutaram aqueles anos todos, mais de doze, desencadeando manifestações na Praça Maior, mães e mulheres que choravam os familiares, ostentando também, com fotografias, cartazes e gritos, ordens ditas em grandes letras no sentido de forçarem a devolução dos eventuais sequestrados, sobre os quais, aliás, julgavam ter indícios de sobrevivência em campos de trabalhos forçados. A quase totalidade dos seus cadáveres teria, contudo, sido trasladada para o banco de frio. O caso que mais intrigou os investigadores parecia haver decorrido nos últimos dias da queda do regime: uma rapariga jovem, assistida por ventilação artificial, jazia na marqueza, com restos de pele e do rosto, quase encostada à parede do quarto. Esse separador de tijolo e massa branca mostrava-se, paralelamente, recoberto por uma infinidade de riscos, letras porventura escritas torturadamente com as unhas, entre as quais sobressaía, desenhado em líquido azul, primeiro um nome bem comum, ANA, e por baixo outro ligado a um mundo que a humanidade sempre temera: ORWELL. Era por certo uma alusão ao escritor inglês George Orwell, o que marcava um grito de alerta indescritível. Ana era sem dúvida o último cadáver daquela sala, pois ainda conseguira rebentar o frasco suspenso (como nas transfusões de sangue) donde teria pingado um enigmático líquido azul. Depois porque a rapariga usara a sua mão direita a fim de escrever ao lado. Com efeito, verificou-se o arrancamento do fio, caído na perpendicular e cheio daquele produto agora azul escuro, seco, obstruindo a saída em jeito de trombose colossal, orlada de coágulos azulados. Da mão esquerda da prisioneira, já óssea e tombada para o chão, havia igualmente tubos enrolados que se afunilavam para um reservatório de vidro. quase cheio de sangue escuríssimo, bem como os tubos principais ligados por agulhas ao desaparecido sistema vascular da rapariga. A autópsia e os estudos efectuados sobre este singular cadáver, todo ele encontrado com uma espécie de bata hospitalar e com tubos enovelando-se sobre o peito, veio revelar que a vítima tinha sido mantida viva até ao limite da sucção do seu próprio sangue para os frascos que, à semelhança de outros casos, foram descobertos, aos milhares, numa zona ocupada pela rede de frio. Nos imensos corredores, que se cruzavam perpendicularmente, havia ainda calhas metálicas e câmaras de um circuito interno de televisão, instaladas a intervalos estratégicos, como de resto acontecia em salas que pareciam de aprisionamento e outras, com toda a clareza, onde se praticava cirurgia ou algo muito semelhante na forma. Ana ainda tivera forças para nos comunicar a essência terminal do seu caso. E por isso desenhou uma palavra emblemática que tudo resumia: Orwell.
Na Praça Maior, as mães que se arrastam todos os anos em preces e pedidos patéticos de salvação para os seus familiares desaparecidos, insistem hoje em forçar o novo governo a revelar os nomes dos agentes daquela organização, o julgamento exemplar dessa gente, incluindo por certo outras personagens sinistras que vampirizavam os sequestrados. Porquê e para quê? Por ordem de quem, em nome de quem, como, quando? Ana não tivera meios, espaço e força para deixar na parede mais uma marca, assaz decisiva: BIG BROTHER.



Este texto resume a história que inspirou a produção do filme «A Morte de Ana Orwell», anos 90, filmado em super 8, com a contribuição da pintora Maria João Gamito. O filme concentra-se na vampirização da personagem e no seu lento estertor, assistida por suportes de vida por um lado e sangrada cientificamente por outro. Alegoria a partir da acção das mães argentinas, com filhos desaparecidos para sempre, e do seu protesto numa das praças de Buenos Aires. Se isso é parte da história contemporânea, e se passou sob os nossos olhos, a história aqui contada e o filme não passam, naturalmente, de ficção.

filme integrado num estudo sobre a imagem na Universidade Aberta

sábado, dezembro 22, 2007

A BOCA OU O NOJO AOS VELHOS


As bocas. A boca. Comer a falar, sinto prazer em comer, comer ainda mais, criando a ilusão de que a vida será mais longa. Mesmo quando bebo chá nos intervalos das «grandes» refeições, assim acontece, bolachas a jeito, doce de maçã, bocas cheias esfarelando para a roupa os restos de uma mastigação afogueada e deficiente. As gengivas de pedra cobrem-se, durante algum tempo, por lábios enormes, horizontais, e as mãos trémulas, ajudando-se uma à outra, levam as chávenas à ponta dos lábios de súbito transfomados em bico de funil, metamorfoses funcionais dos corpos, apesar das peles encarquilhadas e das artroses paralisantes ou outras deformações mais avançadas, armadilhas tantas vezes lançadas aos que pior se deslocam, ou, tragicamente, a todos os que perdem, no deslizar das doenças, o ânimo de chegar mais além, alguns dos quais abreviam pelo suicídio a pobreza dos impulsos conscientes. São os que, em certos casos, recorrem à mais terrível das escolhas, de forma espectacular, escarnecendo da bonomia e da fé dos que permanecem à espera da salvação, na sombra estreita das suas vidas vegetativas.
A meu lado, Francisca esquece o olhar e a bolachas que se espalham sobre a saia de fazenda preta. «Em que é que está a pensar, tia Francisca?» Ela estremeceu e baixou a cabeça: «São estas coisas tristes que nos lembram os nossos mortos» Aperto as mãos uma na outra para não falar ao acaso da minha própria angústia. Agora digo: Estar triste é um pouco como querer morrer. A poesia ajuda-me a perceber o estado dos meus sentimentos, aquela inclinação para a loucura de que nos fala o nosso amigo Mateus»
_____________________________________________________
N. Do livro «Nojo aos Velhos», em preparação no círculo dos leitores, do autor deste blogue

TRÊS APRESENTAÇÕES DO MESMO REAL



Ontem foi combóio,
combóio esmagado,
combóio cheio
de um povo todo.
E agora é pintura,
é colagem,
restos mandados
pela fotografia
e pelo olho humano,
assim
ou de outra maneira.








Ontem foi combóio
e hoje é fotografia
à antiga,
nem
preto nem branco,
cinzas
de latas
e gente dilacerada











Ontem foi combóio,
agora é registo,
papel
transparente
no qual está suspenso
o negativo
dos registos,
outra apresentação
do real,
coisas encalhadas
no fundo da retina.

quinta-feira, dezembro 20, 2007

ABRUPTAS, ESPERADAS MANHÃS BRANCAS

pintura digital de rocha de sousa




beleza de manhãs arrefecidas sobre o aniquilamento,

paz vertente

passada por manhãs em sopro

de brancura, sobre a pressão esplendente do vazio,

sem uma pausa, continuadas, pequenas,

num plano difundido, embriaguez estática, êxtase

horizontal, levitante, paragem quase

apaixonamento, quase desgaste para trás,

quase um pouco de tempo na sumptuária ausência

do espaço dessas manhãs, e como de repente

se perfuma de velocidades internas,

como se apressam de uma miriápode troca

de atenção, escarpas no ar bruto,

centro de buracos deslumbrantes,

a convulsa clareira dessas manhãs que se extenuam dentro,

energia,

relampejante textura, uma espécie

de fruta rachada fria, para uma treva sua se retiram

as manhãs respondidas,

toda a beleza assintáctica, uma cara arrasada

por lunações abruptas,

a madeira fulminada pelo tacto doloroso,

pistas de esporões e tramas vivas,

os jactos de néon filtrado a prumo,

e as manhãs ressuscitam, primitivas, surpreendidas

*

poema de Herbert Helder, excerto de Os Brancos Arquipélagos

segunda-feira, dezembro 17, 2007

UMA NOVA MANEIRA DE RASGAR CARTAZES

pintura digital, colagem descolagem e riscos
Vinha eu descendo uma rua do bairro, gemendo por causa da dureza das pedras da calçada, feita e refeita em obras descontínuas, quando uma senhora colossal me estampou contra uma caixa de ferro da Companhia da Luz, central manhosa, de muitas conexões eléctricas que se espalham por toda a cidade, entre esquinas e covas fundas da noite outrora deslumbrante. Encostei-me áquela caixa pintada de cinzento, repintada e rasgada, cheia de restos de cartazes que os lisboetas gostam de e arrancar de passagem, ao passarem, aquecendo os dedos nessa tardia desconstrução, os olhos engolindo desenhos mal amanhados nas paredes de subúrbio, coisas da malta, coisas que já formam um delírio de génios do grafitti, pinturas murais que tanto se fazem assim, estilo próprio e técnicas cada vez mais apuradas, como são, no seu melhor, formas parietais, a sujidade decorativa dos muros envelhecidos que ladeiam impropriamente certas vielas. E eu a sacudir a roupa, a esfregar a perna, olhando de esguelha a belíssima pintura que cobria a feia caixa da Companhia, o que me induziu, numa espécie de súbita pacificação, a espreitar melhor os papéis rasgados, letras, vermelhos, um rosto feminino que servira de modelo não sei há quanto tempo. E levantei um bocado do papel, que era parte de um monte de folhas coladas por cima das antecedentes, feridas pelas unhas, rasgadas com prazer, favor de limpeza lúdica que apenas desvenda a morte de papéis mais antigos, empastados, lindos de morrer nas suas carnes expostas, contingentes, derramando pintura em descolagem, uma corrente artística vinda de França, ou das docas de Nova Iorque, já nem sei. Pois eu tinha as mãos subitamente secas e feridas, cheias de papéis empenados, gordos, dois ou três a suportar um dos últimos, a rapariga, os riscos de crianças apressadas, entretanto margens e fundos vermelhos, que raio de coisa tão bela e tão inútil, da qual se soltavam outros pedaços para as minhas mão sequiosas de pintar, ou colar, ou riscar. Levei tudo, como Jonas quando se encarniçava na sua obra afinal mansa, levei até casa, havia de colar tudo, de pedir a um miúdo da rua para acabar de fazer o que havia a fazer sobre todas as sobreposições. E eis que os meninos recolhidos pela Santa Casa da Misericórdia, que moram onde eu moro, mas num centro de Acolhimento produtor de barafunda na saborosa mistura de raças que anda por ali, disseram «eu quero». E foi ali que eles se apropriaram da minha colagem, «a gente pinta, a gente desenha, a gente cola», rodando no pátio do prédio, canetas de feltro na mão, tintas sabú, uma régua para riscar o que fosse preciso riscar a direito. Meninos! Era a Educadora a tratar do rebanho, uma Educadora loura e insinuante, que olhou para a minha obra pendurada das dedos e sorriu a dizer que tanta coisa junta era bonita, não era borrada, «devia oferecer-nos o resultado do jogo para colocar na sala das brincadeiras». «Preciso primeiro de fotografar» «Porquê?» «Ora essa, também me cabe alguma coisa, obra, parte de um testamento, a memória estilhaçada» Foi então que a Educadora, imaginando não sei que malefícios, me fechou a porta na cara. A um metro da cara, diga-se a verdade. O boneco fica aqui como testemunho para as escolas: em bandos vão pela cidade, inutilizando cartazes com tinta e spray, descolando e rasgando outros, coleccionando montanhas de destroços para espalharem pelo quintal, como peças de um puzzle, a juntar a contrução à reconstrução plástica (constru+pintar). Assim começarão a aprender a limpar toda a cidade, refazendo-a de outra maneira, longe de Disney, longe do Potter, nada de lendas e maravilhas, só força de encadear, misturar, sobrepor, rasgar e juntar de novo, prontos para uma fala sem meninos, nem gatinhos, só plof, plof, bué lindo, Juca.

AS PAISAGENS DE SANGUE

pintura digital de rocha de sousa 2007

Deixo aqui, em vez de palavras combinadas desde há séculos, uma imagem que vale menos do que mil palavras. Este «Paisagens de Sangue» não é um aceno panfletário aos guerrilheiros e terroristas do nosso tempo: é talvez a esperança a bipolaridade, entretanto desfeita, se repensar em grandes grupos regulados pelo equilíbrio da realidade territorial, aperfeiçoamento das culturas, interacção aberta e sem os sonhos brutais de poder. Podemos desejar assim, uns aos outros, melhor forma de estar no próximo ano, colocando entre parênteses o Natal que desde cedo se fez alternativa consumista, com palhaços muito menos interessantes do que os limpa-chaminés autênticos, homens que surgem de tempos a tempos e nos oferecem um melhor vento na calha dos fumos, verdadeiramente menos fuligem -- cinzas de cadáveres suspensas do interior das chaminés, simulação salpicada ou a saudade dos que partiram para lugar nenhum.


quarta-feira, dezembro 12, 2007

RESGATE DE OBRAS E PORMENORES DOS ANOS 70/80/90

Todas estas obras e fragmentos surgiram nas décadas acima indicadas, obras que vieram de caminhos paralelos a uma certa tradição pictórica, já aqui mostrada, mas que se distinguem na forma e na técnica determinante, entre colagens, fotografias artificialmente gastas, tinta acrílica, insrumentos comuns (pincel, canetas, etc) e processos de spray. As imagens de 90, donde se retiraram fragmentos ligados ao desenho, colagem e fotografia, procuram marcar o trajecto que realizamos dia-a-dia, sob o império das imagens jornalísticas, lugares quase perdidos na memória, grades em volupta, madeiramentos e paredes anunciando o lado abrasivo da passagem do tempo. Dos velhos arquivos em publicações de referência, emergem também testemunhos das guerras do século XX, proscritos, a agonia das limpezas étnicas, olhos meninos, impressos num papel envelhecido, olham para nós, talvez esperem o amanhecer, enquanto a oputra escala dos anos podem aparecer restos de documentos no termo de batalhas em África e a marca de uma tecnocracia expedida: passe do que constar.



NA DERIVA DOS CAMINHOS ACHADOS




Entre os anos 70 e 80, para além de muitas obras que foram «distribuidas» pela galeria Judidacruz e outras que permanecem no seu acervo, a procura de soluções repartia-se entre a sugestão de objectos abandonados, estruturas de ua vaga construção desértica, e ainda lixos urbanos, restos em constante crescimento ou como derrocadas de uma civilização que ainda se alimenta de conflitos bélicos, diplomacias eufemísticas, genocídios, além de maquinaria assombrosa, perfurando a terra, erguendo inúteis torres de um gigantismo esquizofrénico.













RESGATE DE OBRAS E PORMENORES DOS ANOS 60

A actividade desenvolvida nos anos 60, com um intervalo de mobilização para a guerra em África, sofreu os desencantos da época e uma terrível exiguidade de meios, entre o lugar de trabalho e as matérias do domínio pictórico ou gráfico. O desenho com que inicio num pequeno resgate de obras dos anos 60 tem tudo a ver com uma capa realizada para a ed. Ulisseia, livro ÓPIO, de Cesariny. Os outros não deixam de estar nessa linha e alguns, llavados mas doridos, ainda participaram numa exposição em Luanda, no Museu de Angola


































Desordenado, esquecido das coisas feitas outroras, experimentalista e dado à pesquisa multidisciplinar, estes desenhos, colagem, pormenores de peças construídas em técnica mista, é um pequeno resgate de alguma da minha actividade artística, sobretudo na primeira metade da década de 60. [rocha de sousa]

terça-feira, dezembro 04, 2007

SIMULAÇÃO DO QUADRO INVISÍVEL

rocha de sousa

texto dedicado ao quadro invisível


O que o Professor viu, do outro lado do rio ou mais longe, com o mar por perto, parecia a anunciação da verdade, entre sonhos ébrios e festins de gente desconhecida, ornamentada com esplendor, talvez a grande tela das pulsações rítmicas e do desejo. Era um cenário em ruínas, lixos em volta, pintura de destroços e grandezas perdidas. Casas de adobe, movimentos larvares de homens nus, alguns procurando trepar os depraus do palco, num ginga-ginga absurdo e viral, a sugerir histórias escabrosas, lendas ou visões ao jeito de Georg Grosz, e por isso era de presumir que se estivesse simultaneamente diante do espectáculo da linguagem, na belíssima esquizofrenia própria da transição do século, num adivinhado Apocalipse de chamas prontas para devorarem tudo à sua passagem. Após cada metamorfose, cada monte de cinzas, erguia-se uma ópera diferente de outras óperas de outros tempos, espectáculo contraditório das indizíveis fomes à beira dos pântanos, lamas e répteis, plumas luxuosas, gente caricatural, penosamente obesa, que vinha alcandorar-se, lenta, como plantas tropicais, nos varandins suspensos de um palácio imaginário, surreal naquele limite do mundo. Velhos olhando acasos, poeira em redor, eles mesmos sujos de uma espécie de argila ou leite derramado, velhos cujas pálpebras húmidas, carregadas de nostalgias, acabavam por se tornar notáveis figurantes. Mulheres sentadas de forma ostensiva, as suas carnes de chocolate convertidas em grandes seios, bolsas flutuantes na água da cheia, barrenta, cheiro a fezes e a terra, a mortos e a flores ocasionais. Traves em queda, mais além, cabanas vazias, placas de construções derrubadas pelos novos ventos vindos de todos os lados, estratos de coisas sem nome, estratos e maus estratos, corpos mumificados entre eles, restos de genocídios de que ninguém quis saber, latas batidas aqui e além, choros e murmúrios fingidamente terminais. Tudo é desabamento, representação a óleo ou a tintas de água, moços esguios retratados para a revolta, mordendo as suas canções indignadas, por vezes notas roucas de uma espécie de morna, memória de ritos meridionais ou requiem africano, entre o fim das almas acenando de longe e as noites impiedosas, sem madrugada. A manhã baça escorria sobre a rede de troncos geminados, folhas gordurosas. E havia sempre alguém procurando modos de matar a fome, a excitação, os gemidos dos amantes, e um contentamento breve quando os pardais gordos se deixavam apanhar nos baldios e estaleiros de madeiras pôdres. Pardais apanhados à mão, cadeirões de verga nas varandas de perfil colonial, o fantama de alguma velha senhora ou as voltas da Cristina bailunda, depois os pássaros torrados, um cheiro de ervas e molhos, tudo na lonjura perdida para as montanhas de lixo, troncos, cascas, carrinhos de bébé, as bandeiras rasgadas, armários com vidrinhos verdes num fundo verde esmeralda, caçadores de coisas raras nos seus cavalos espumando de cansaço, cenas de mil injustiças entre gigantescas nuvens wagnerianas subindo ao céu depois da calcinação dos bosques. Aqui e além, nos montes de desperdício, rolaram cabeças degoladas, perdendo-se entre cadeiras inúteis, mesas e animais carbonizados, objectos sem rosto, tudo, em suma, votado à inutilidade de um território que deveria alimentar o mundo inteiro, em vez de suscitar sobretudo a fome de gente sem pernas acomodada nos cenários de casas velhas, candelabros oxidados, tectos rechados, jornais amarelecidos, um relógio da bisavó e dois retratos indecifráveis de quando os meninos usavam quadros de ardósia. Tudo escorre num discurso contínuo e o Professor, de mãos apertadas, não saberia classificar uma pintura assim, que nem os mexicanos fizeram, e que fala de tudo na invisibilidade de tudo.